A julgar pelo histórico de Caetano Veloso, Cê é um projeto audacioso. A ruptura do disco não se limita à sonoridade, mas se estende aos procedimentos criativos. Versado nos caminhos do samba e da bossa-nova, Veloso resolve se aventurar, desta vez, pelas vielas do rock. Áspero e provocativo, Cê se destaca, antes de tudo, pela consistência de sua proposta estética.
Apresentando construção minimalista, “Outro” é musicalmente interessante, poeticamente discreta e, de maneira geral, um tanto rasa. Sob o aspecto musical, “Rocks” constitui um ponto alto do disco, mas os versos, apesar do bom início (“Tatuou um Ganesh na coxa / Chegou com a boca roxa de botox), escorregam em um refrão de gosto duvidoso: o coloquialismo “mó” pode não agradar a todos, mas a colocação indevida da palavra “rata”, que acaba se tornando “raTÁ”, vai além da mera preferência estética. Melhor momento do disco, “Não Me Arrependo” se destaca pela qualidade poética, bem como pela parcimônia no emprego dos elementos musicais. “Odeio” e “Homem” são outros bons exemplos de realização bem-sucedida da estética do disco, a primeira pela irreverência poética e a segunda pela abordagem perspicaz da sexualidade, sem esbarrar em lugares comuns, sequer na vulgaridade. Ainda assim, há momentos deprimentes, como a provocativa “Por Quê”, que parece existir unicamente para ser criticada, capricho de artista que não precisa mais provar seu valor.
É preciso destacar o belo trabalho da banda Cê na concepção deste disco homônimo. Formado, a pedido de Caetano Veloso, pelo guitarrista e produtor Pedro Sá, o trio é integrado por Ricardo Dias Gomes (contrabaixo e piano elétrico) e Marcelo Callado (bateria). A bela execução de faixas como “Deusa Urbana” e “Musa Híbrida” se deve, certamente, à competência dos músicos envolvidos, mas, além disso, ao diálogo destes com o compositor: “Entendiam tudo o que eu falava e dava tudo certo, conheciam tudo a que eu me referia, melhor do que eu”, diz Veloso, em entrevista a Marcelo Fróes.
Mesmo apresentando muitas lacunas, Cê significa o início de uma nova etapa na carreira de Caetano Veloso. O desafio de escrever para um conjunto instrumental distinto fez surgir bons números, como “Não Me Arrependo”, “Odeio” e “Homem”. Em outros momentos, como “Rocks” e “Outro”, é possível identificar bons elementos, apesar dos deslizes mencionados. De qualquer forma, as conquistas de Cê – a sonoridade e a performance da “Banda Cê”, aliadas à renovação estética proposta por Veloso – abriram caminho para o próximo disco do grupo, o bom Zii & Zie.