Resenha do Cd Mulher Tombada / Karine Alexandrino

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MULHER TOMBADA
KARINE ALEXANDRINO
2015

TRATORE
Por Lazaro Cassar

Análises musicais dependem muito de categorias para que o leitor consiga tecer associações que se aproximem do conteúdo abordado. Essas reduções (“ecos setentistas”, “guitarra hendrixiana”, “sonoridade beatle”, etc.) possibilitam ao audiófilo esquadrinhar com alguma precisão terrenos sonoros desconhecidos. Algumas dessas analogias são perfeitas em sua similaridade, visto que a quase totalidade da produção musical contemporânea trafega em territórios já exaustivamente pisados, numa busca desenfreada pelo “soar como”. Não há, por exemplo, uma só cantora brasileira desde Marisa Monte que ressignifique certos – aliás, sempre os mesmos - códigos (Gal, Tropicália, baianices, macumbelês, Astrud Gilberto, etc.) com alguma originalidade que demarque suas idiossincrasias (o que nos faz pressupor que, em média, o artista brasileiro contemporâneo é de formação musical rasa, presa aos nossos “patrimônios musicais maiores”). Nunca há uma reta fora da curva. A tal pós-modernidade, de consequência do colapso de informações aglutinadas com o passar das épocas (e que gerou, sim, obras originais como “Transa”, de Caetano, “Expresso 2222”, de Gil, ou até mesmo “Omelete Man”, de Carlinhos Brown), se transformou em uma causa extremamente cômoda, pois basta que se emule os totens culturais brasileiros para que o artista adquira chancela de público e crítica. Um banquinho e um violão é o epicentro direto e óbvio da epistemologia joãogilbertiana. Uma cantora com sonoridade afro não consegue se desviar das inhansãs de Clara Nunes. Um barbudo com pretensões poéticas exageradas deixa bem claro que quer ser tão estudado como Chico Buarque. Obviamente encobrem a falta de identidade com a produção de um Kassin ou de um Domenico Lancellotti, que, com seus loops, supostamente modernizam esse eterno mais do mesmo. Alguma exceção a essa regra? Uma única. Karine Alexandrino.

Surgida em 2002 com o despretensioso e leve “Solteira producta”, ali Karine já tangenciava uma saudável estranheza em sua proposta. Não a estranheza como cláusula apriorística, mas como consequência de um projeto muito bem delineado, que até emulava conscientemente, sem que isso depusesse contra sua originalidade, certos signos extremamente reconhecíveis, como a jovem guarda e o brega. Uma resenha da extinta Revista Zero chamou o álbum de “a melhor coisa surgida no Brasil desde Mutantes”. Talvez não para tanto, o que não se pode dizer de “Querem acabar comigo, Roberto”, de 2003. Ali sim, Karine demarcava seu território como a mais autêntica artista contemporânea do Brasil, já que a beleza de suas melodias, por mais tortas que fossem, paradoxalmente não detinham a frívola pretensão de voz dissonante. O compromisso era com essa espécie de belo transfigurado pelo humano-demasiado-humano de seus versos (incorporando as elipses e sintaxes tortas da fala cotidiana), ancorando-se em um projeto estético altamente particular, cujos eflúvios beatle e setentistas não eram mais do que peças inconscientemente incorporadas à sua cama sonora. Karine era o indizível em sua forma mais redonda e acabada. E nada mais coerente para uma artista que buscava escopo na experiência humana para remodelá-la em sua arte do que abrir mão da continuidade de sua obra e priorizar a vida em sua plenitude. Karine deu uma parada de dez anos (sempre utilizando as redes sociais para dialogar diretamente com seus fãs, registrando desde intervenções performáticas até postagens frugais de seu cotidiano em família pelo facebook – o humano, afinal) e só retornou agora, com o magistral fecho de sua trilogia: “Mulher tombada.”

O álbum não dá espaço para firulas, para músicas “em crescente”. Logo de início, a porrada sônica “Do chão não passa” nos atravessa como uma facada, tanto pelo punch instrumental enxuto de Dustan Gallas, quanto pelos versos metafísicos de Karine (“Não estou minimamente preocupada com o andar dessa carruagem/ porque do chão não passa/ (...) descobri que o chão é uma farsa”), apenas ilusoriamente simples, dado o apelo dançante da canção. É o cartão de visitas de seu mais bem acabado disco, trafegando sempre pelo imediato (ao contrário do pendor etéreo de “Querem acabar comigo, Roberto”). A urgência permanece em faixas como a roqueira “Zelda não morreu, quem morreu fui eu”, no diálogo tresloucadamente incorreto de “Troglodita predileto”, nas emulações mariachi de “Amor na estrada (quero sair dessa maldita bolha)” e na melhor ode à ruptura relacional desde algum Roberto lavra 70, a nietzscheana “Se não for sincero, não quero” (“não jogue displicentemente, você é o alvo/ quebre pontes atrás de você, não deixe rastro/ mate esse mundo antigo, jogue o laço/ quem não tem medo de errar apressa o passo”). Para manter a tradição de sua trilogia, Karine resgata uma pérola (sempre atípica) do cancioneiro popular (aqui, “Devaneios”, do gênio Julio Iglesias), ativando seu lado crooner sem espaço para nítidos paternalismos de classe ou roupagens cool. Não. Karine canta com reverência e transborda sentimento, assim como já fizera com “Feelings”, de Morris Albert e “Dio come ti amo”, hit sessentista italiano. Outra característica do repertório textual de Karine é o jogo sonoro que confere ambiguidade idiomático-fonética aos versos (“Lost in translation” é perfeita nesse quesito), seara até então explorada com perfeição apenas por Chico Buarque em “Joana Francesa”. Mas em matéria de radiofonia, nenhuma atinge com tanta rapidez como “Radio AM (amor de telemarketing)”, essa sim, propositalmente emuladora de todas as canções fáceis que percorrem o dial (aliás, quem nos dera se essas canções possuíssem a qualidade da de Karine – o que nos faz concluir que, se ela quisesse “massificar” suas músicas, assim o faria com facilidade, pois é nítida sua desenvoltura em trafegar pelo terreno das canções grudáveis, mesmo que com intuito paródico).

Falar mais é inútil, pois, como já foi colocado, Karine é uma artista que não se reduz a formas prontas. Mesmo as imagens de sua nudez no encarte são isentas de ideologices clichês (compare-as com a nudez de Daniela Mercury na capa do último álbum da baiana, por exemplo), mas sim partes de sua concepção de obra pluridimensional. Todas as tentativas de conceituar sua sonoridade aqui não passam de aproximações, até questionáveis. Em um país com uma indústria fonográfica séria, com uma crítica musical não comprada pelo establishment, Karine Alexandrino seria tão reverenciada quanto uma Patti Smith. Infelizmente em um lugar como o Brasil, acaba sendo iguaria para poucos. Mas esses poucos finalmente terão algum motivo para se orgulhar de alguém surgido nessas plagas que ousa... ousar. E bradar, em alto e bom som, mesmo que poucos escutem: viva Karine Alexandrino, a maior de todas!

Resenha Publicada em 15/02/2016





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