Por Anderson Nascimento
Figura comum em shows beneficentes que visavam ajudar entidades e pessoas diversas, Jards Macalé usou o seu bom-humor e pensou : “por que não fazer um show em meu benefício?”. Com atitude de humor, denúncia e necessidade, Macalé, que vivia uma situação econômica precária, de acordo com ele próprio no encarte do CD1, saiu à procura de um local adequado e dos amigos que o artista tinha certeza de que topariam participar.
Esse é o cenário da realização do show “Direitos Humanos no Banquete dos Mendigos”, evento que pegou gancho nas comemorações do 25° aniversário da Carta da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e reuniu boa parte da nata musical da época.
O show foi realizado no dia 10 de dezembro de 1973 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM) e gravado na encolha pelo engenheiro de som Maurice Hughes. Em companhia de Xico Chaves, Jards preparou um álbum duplo com os melhores momentos do show. No entanto esse vinil só foi liberado cinco anos depois da gravação do evento, já que a sua veiculação foi proibida em todo o território nacional até 1979.
Mais de quarenta anos depois de sua gravação, o álbum chega finalmente em CD, em um Box triplo e, pela primeira vez, trazendo a íntegra do show, via Selo Discobertas, dirigido por Marcelo Fróes.
Essas gravações vão garantir ao ouvinte uma sensação única de incorporar o clima daquele período musicalmente rico e politicamente difícil.
No primeiro álbum, por exemplo, não tem como não se divertir com “Samba dos Animais” com Jorge Mautner em uma apresentação cheia de bom-humor. Ou ainda se deleitar com Paulinho da Viola apresentando os ainda jovens clássicos “Dança da Solidão” e “No Pagode do Vavá”, lançadas por Paulinho um ano antes desse show.
O disco dois vai fazer os fãs de Raul Seixas se arrepiarem ao ouvirem Raulzito destruir tudo com “Al Capone”, acompanhado por uma guitarra nervosa em uma versão muito diferente da que conhecemos. Raul ainda explica o significado do nome da música “Cachorro-Urubu” mandando uma bonita versão da canção. O “maluco beleza” ainda emenda uma versão inquieta de “Ouro de Tolo”, com direito a versos em espanhol e encerra com “Mosca na Sopa”.
Luiz Melodia, então com 22 anos, manda ver uma versão roqueira de “Vale Quanto Pesa”, e mostra o quanto já era querido ao ser ovacionado com o seu hoje clássico “Pérola Negra”, canção que fora lançada havia pouco tempo.
Ainda no segundo disco ainda há o obscuro grupo Soma, formado em 1969, mas que em 1973 contava com Bruce Henry (baixo e voz), Jaime Shields (guitarra e voz), Alírio Lima (bateria) e Ritchie Court (Voz, Flauta) , ele mesmo, o nosso “menino veneno”, em sua formação.
Obviamente o show teve que passar pelo crivo da censura, que chegou a cortar 70% das canções que seriam apresentadas no show. O clima tenso pode se percebido ao longo do evento, nas palavras de Paulinho da Viola, por exemplo, que se desculpa com o público por não poder cantar nada além do programado. Já Chico Buarque faz uma analogia do desfalque de Magro do MPB4 no dia do show, com o desfalque de seu repertório, imposto pelos censores. Além disso, Chico ainda diz que gostaria de cantar “Para Quando o Carnaval Chegar”, mas foi impedido. Atrevido, Chico manda sem cerimônia um pedaço da então incompleta “Jorge Maravilha”, levando o público à loucura, que logo ensaiou uma vaia ao perceber que Chico não podia mais prosseguir com o seu show.
O terceiro CD do box encerra com a leitura dos Artigos da Carta de Declaração Universal dos Direitos Humanos por Ivan Junqueira, mas agrega também ótimas participações de gente como Milton Nascimento, Jards Macalé, Dominguinhos e Gal Costa.
Além dos artistas citados, o box ainda agrega os artistas Edu Lobo, Johnny Alf, Gonzaguinha, MPB4, Edison Machado e Pedro dos Santos. O áudio apresenta boa qualidade sonora e os encartes ainda apresentam todas as letras das canções interpretadas no show, além de todas as informações técnicas disponíveis. Trata-se de um registro único, e muito importante na coleção de cada apreciador de música, visto que estão ali figuras das mais relevantes da nossa música à época.