Por Valdir Junior
Quando os Beatles entraram no Twickenham Film Studios em Londres no dia 02/01/1969 para o inicio das gravações do projeto de filme/disco que viria ser conhecido mais tarde como o álbum “Let it Be” nenhum deles estava com o mínimo de ânimo ou disposição para voltarem a fazer música juntos tão cedo desde as pesadíssimas e cheias de conflito, sessões de gravações para o “Álbum Branco” em meados de 1968.
A ideia em si para o projeto era até que bem sacada para época, documentar uma banda de sucesso ensaiando e gravado novas músicas a serem apresentadas no final num grande show ao vivo, mas na prática essa boa ideia não tem a mínima chance de sucesso se a banda em questão não está se entendendo, e o resultado é um filme e um disco que mostra como uma banda chega ao seu fim.
Como as primeiras semanas de gravações em Twickenham não foram nem um pouco satisfatórias, tanto do ponto de vista técnico quanto do ambiente, as gravações passaram para os estúdios da Apple Records em Savile Row, onde o clima melhorou um pouco entre os Beatles e as gravações tiveram andamento.
A ideia era gravar o novo álbum “ao vivo no estúdio” da mesma maneira em que eles gravaram seu primeiro álbum “Please Please Me” em 1963, evitando quaisquer overdubs e pós-produções, as horas e mais horas gastas para encontrar “a performance ideal” acabaram resultando em mais descontentamento entre os quatro Beatles e, no final, depois do curto show surpresa no telhado da Apple, se cansaram e deixaram todo o material de lado.
Coube ao engenheiro Glyn Johns compilar as centenas de horas de gravação em um formato que fosse de agrado dos quatro Beatles, após várias tentativas e descontentamento geral de todos envolvidos, John Lennon e Allen Klein (consultor financeiro da banda e pretenso candidato a vaga de empresário) entregaram as fitas para o produtor e lenda da música Phil Spector, no intuito de ver se ele conseguia “dar um jeito na coisa”.
Spector, famoso por suas superproduções em estúdio e sua “muralha de som” (usando orquestras inteiras para os arranjos) acabou dando forma final ao álbum ao mesmo tempo em que deliberadamente cometeu um “grande sacrilégio” interferindo nos arranjos e acrescentando côros e orquestrações aonde não havia, o que deixou Paul completamente contrariado e enraivecido com o resultado final, mas já era tarde demais e mais nada podia ser feito, já que o disco estava há muito atrasado e já sendo prensado nas fábricas.
Durante muito tempo o álbum foi malhado por críticos, fãs e de certa forma renegado até mesmo pelos Beatles, devido a interferência de Phil Spector (Paul sempre foi muito claro em relação a isso), e com os muitos bootlegs que foram aparecendo no decorrer dos anos, com versões mais simples e até melhores que as selecionadas para o álbum, meio que criou o consenso de que “Let it Be” era um disco menor em relação a outros álbuns dentro da discografia dos Beatles. Mas olhando agora em retrospecto com uma distância confortável de espaço e tempo, podemos analisar e escutar o álbum diante daquilo que mais importa: a música.
As 12 faixas do disco (contando com os breves improvisos de "Dig It" e "Maggie Mae"), mostram a qualidade extraordinária e a relevância das mesmas enquanto composição e a forma como elas estabeleceram o formato ideal e esperado para um disco de Rock. Aqui encontramos balada folk/pop ("Two of Us"), puro rock ("Get Back" e "One After 909"), o equilíbrio entre o blues tradicional, o mais estridente e o mais denso ("For You Blue","I've Got a Feeling" e "Dig a Pony"), a balada etérea e jazzística ao piano ("The Long and Winding Road") contrastando com outra ao violão (a cósmica e psicodélica "Across the Universe"), e música pop em ritmo de valsa com temática existencial ("I Me Mine").
Sem esquecer, é claro, de “Let it Be”, canção arquetípica de esperança e conforto, feita na medida a ser cantada em coro pelo público nos shows no momento de celebração, com direito ao estádio na penumbra e milhares de isqueiros (ou celulares) velando e iluminando os corações de todos presentes. Tudo isso caiu no gosto e nos ouvidos do público em geral (mesmo com todos “defeitos” de produção) de forma tão sincera, espontânea, cativante, que contraria a expectativa de que um álbum composto, gravado e produzido em meio a uma processo de separação de uma banda, possa e consiga produzir uma música de qualidade e eterna. Isso é apenas um exemplo da grandiosidade e da atemporalidade da musica feita por John,Paul,George e Ringo.