1968 foi um ano singularíssimo em todo o mundo. Na França, explodiu um movimento que há muito pleiteava a reforma das instituições de poder. Diante das inegáveis modificações sociais havidas na época, foi através da cultura que os franceses buscaram "reformar o poder, pelo imaginário", como eles mesmos afirmaram.
No mesmo ano, grande parte da juventude brasileira levantou-se contra a ditadura e a recém outorgada Constituição, sem saber que o pior ainda estava por chegar, nos moldes e formas do AI-5. Com a Tropicália, movimento cultural sem par em solo pátrio, tentamos consagrar que era "proibido proibir". Foi neste cenário que Os Mutantes exsurgiram e mudaram os rumos da história da música no Brasil.
No entanto, este status que marca a banda até os dias de hoje demorou para se formar. Afiliados ao tropicalismo, Rita Lee, Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e restante dos irmãos Baptista receberam dedos em riste tanto da esquerda (que não admitia o modo com que a tropicalismo havia rompido com a tradição musical tupiniquim) quanto da direita (que não suportava os cabelos compridos e os músicos encharcados em drogas). Mas, ainda assim, não podemos falar de música no Brasil sem falar em Mutantes.
Este primeiro disco, registro insofismável dos sentimentos que congestionavam toda uma geração, é provavelmente uma das mais instigantes obras musicais de nossa humilde história. Quando ouvimos "Panis et Circenses" observamos tal realidade. A canção de Gil e Caetano é executada com maestria pelo trio e os músicos que os acompanhavam. A beleza incontestável da letra acompanha o compasso incomum da faixa, excessivamente bem trabalhada. "As pessoas da sala de jantar" nunca soaram tão próximas à nós.
Na verdade, tentar descrever as inúmeras paisagens e cores presentes em cada uma das canções que compõe o álbum é uma tarefa hercúlea, geralmente fadada ao insucesso. A cada vez que se ouve o disco, percebe-se um elemento novo que, até então, havia passado despercebido.
Mas, mesmo sob este prisma, é necessário indicar algumas dessas paisagens, tal qual a encontrada em "Senhor F", por exemplo. Esta canção traz uma história peculiar em sua letra que, combinada com as nuances de instrumentalidade, fazem com que se destaquem das demais em tais aspectos. Depois dela, "dar um chute no patrão" nunca pareceu tão fácil.
"Baby" e "Bat Macumba" vêm a bem representar as manifestações tropicalistas da época, fomentando a fusão da bossa nova e ritmos de percussão do país com uma pegada voltada para o rock n' roll. "Le Premier Bonheur du Jour", ao seu turno, oferece um início que flerta com o jazz que, pouco tempo depois, seria representado pelas seis cordas guiadas por Pat Metheny. A canção, que desenvolve-se de modo obscuro, traz uma bela letra sobre a primeira boa hora do dia de qualquer pessoa neste mundo. A versão que o Rock Pensante disponibiliza nesta oportunidade ainda conta com três faixas que, originalmente, não integraram o presente trabalho, faixas estas que valem - e muito - a audição.
Enfim, trata-se de uma excelente obra que representou grande parte da movimentação cultural de uma juventude em sua parcial integralidade. Ainda hoje, "Os Mutantes" soa atualíssimo, como se estivéssemos a trafegar pelas mesmas circunstâncias. Devemos absorver, portanto, todas as lições oferecidas neste disco.
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Resenha publicada originalmente no blog
Rock Pensante