Por Valdir Junior
Quando “A Love Supreme” foi lançado em fevereiro de 1965, o saxofonista John Coltrane (1926 -1967), já havia se estabelecido como um dos grandes nomes do Jazz. Já havia tocado e gravado com Thelonious Monk e participado do celebre quinteto de Miles Davis (marcando sua presença na gravação de um dos clássicos de Miles e do Jazz “A Kind of Blue”) e liderando o seu próprio quarteto, lançando álbuns que se tornariam clássicos como: “Blue Train”, “Giant Steps”, My Favorite Things” e “Impressions”.
Mas para a natureza obsessiva de Coltrane, nada disso importava, a música estava acima de tudo, e desde a sua recuperação do vício em heroína em 1957, baseada em um despertar espiritual e em um ato de fé em si mesmo, sua devoção a musica e a uma força maior conduziram sua vida e seu trabalho nos anos que se seguiram e o ápice criativo disso foi a composição e a gravação de “A Love Supreme”.
Vindo de uma família de pastores metodistas, desde cedo ele foi exposto a uma rica mistura de música, religião e educação, sempre curioso sobre o sentido da vida procurou estudar a maioria das religiões, na última década de sua vida esteve profundamente absorto nas religiões orientais (Budismo e Hinduísmo), assim como na música indiana e sua teoria musical. Coltrane também procurou o maestro e sitarista Ravi Shankar (que mais tarde seria mestre e amigo do Beatle George Harrison) para ajudá-lo a conhecer melhor toda a cultura, música e religião da Índia, uma amizade forte e de profundo respeito (tanto que mais tarde Coltrane daria o nome de Ravi para seu seu filho, o futuro saxofonista Ravi Coltrane), que só não foi mais produtiva devido a morte precoce de Coltrane em 1967.
Um dos fatores que mais ajudaram a evolução musical pretendida por Coltrane, foi a sua consolidação como líder de seu próprio grupo, composto por músicos com uma bagagem musical e pessoal próxima a sua. Depois de algumas formações o quarteto de Coltrane chegou a sua formação definitiva: Jimmy Garrison (baixo), Elvin Jones (bateria) e McCoy Tyner (piano). Formação essa que acompanharia de 1962 até 1965 e que foi a base e a agente facilitadora de todo o processo de composição e gravação de “A Love Supreme”. A intenção de Coltrane era que esse novo álbum mostrasse uma música que ao mesmo tempo fosse uma demonstração de sua gratidão e um veículo para que outros, através dela, pudessem alcançar e vislumbrar “uma verdade maior, presente em tudo e em todos”.
Antecedido pelo álbum “Crescent” (1964), álbum esse que era uma espécie de resumo de seus trabalhos anteriores e também uma indicação para o que estava por vir, muitas faixas ali apresentam um lirismo e uma intenção que ficariam ainda mais evidentes no seu próximo trabalho. Depois de passar três meses compondo e ocasionalmente experimentando uma passagem ou outra em alguma apresentação, “A Love Supreme” começou a ser gravado em 9 de Dezembro de 1964, no estúdio do técnico de som Rudy Van Gelder.
Composto de uma suíte em quatro movimentos: "Acknowledgement" (Admisão), "Resolution" (Resolução), "Pursuance" (Prosseguimento) e "Psalm" (Salmo), as duas últimas foram gravadas uma seguida da outra em um único take. Todas as faixas são o correspondente instrumental mais próximo de “mantras”, onde cada instrumento desenvolve o pequeno tema principal de quatro notas e suas variações, numa levada de improvisos, que se alternam a passagens diferentes para cada músico.
"Acknowledgement", abre com o som de um gongo chinês e o sax de Coltrane arpejando notas anunciando e nos preparando para “a viagem ao sublime”. O tema principal de quatro notas, é um link de blues, um link tão simples e tão usado em diversas músicas (o riff de “Whole Lotta Love” do Led Zeppelin é um bom exemplo desse link), que nas mãos de Coltrane se torna algo tão novo e impensável, que brilha aos nossos ouvidos. A divisão sonora desse tema corresponde exatamente a palavra “A Love Supreme”, ao final da faixa podemos ouvir o próprio Coltrane cantando o tema, sendo essa a primeira e única vez em que sua voz aparece em um álbum.
"Resolution" vem no desfecho da faixa anterior e ao contrário dessa, começa de forma bem calma, até Coltrane despejar um novo tema, quase como um grito de alegria que contagia, apoiado na firme base de bateria e piano de Elvin Jones e McCoy Tyner se assemelha em muito a estruturas mais usuais do Jazz. "Pursuance" e a deixa que Coltrane dá a Elvin Jones para que com a bateria, conduza todos os demais músicos a um andamento polirritmico, saltitante e cheio de gingado, com Coltrane tocado freneticamente seu Sax Tenor em uma saraivada de notas que parecem que em algum momento podem explodir no ar de tão rápidas e fortes.
"Psalm" é a conclusão do álbum, é puramente emocional, John Coltrane derrama toda a sua alma nessa faixa, usando elementos da musica clássica, as frase de seu Sax são usadas para se assemelharem ao tom de voz humana, numa fala/prece que recita na exatidão o texto escrito pelo próprio Coltrane e que acompanha o álbum, texto esse que nada mais é do que sua declaração de amor e devoção a “Deus”, não o deus bíblico, mais sim um deus impessoal e universal, no final da faixa temos novamente uma variação do tema de abertura de "Acknowledgement" encerrando o conceito do álbum.
Logo que foi lançado “A Love Supreme” já se tornou um grande sucesso, principalmente com o público jovem das universidades americanas, lançado em um época em que os idéias de uma “Nova Era” estavam começando a serem espalhados pelo mundo todo através da contra cultura. Após ele John Coltrane entraria na sua fase final, voltada para uma música mais experimental, livre, mais dissonante, abstrata.
Em uma primeira audição de “A Love Supreme”, não será fácil para aqueles que não estão acostumados com a linguagem do Jazz, mas se houver um pouco de persistência, com o tempo as notas e as estruturas harmônicas de John Coltrane se tornarão um bálsamo no meio de cacofonia ensurdecedora do dia a dia, e a mensagem de amor, gratidão e espiritualidade presentes na obra de Coltrane vai tocar o ouvinte de forma única e pessoal.
P.S: Para aqueles que quiserem conhecer mais afundo a história desse álbum, recomendo e muito o livro “A Love Supreme – A Criação do Álbum Clássico de John Coltrane” de Ashley Kahn, lançado no Brasil em 2007 pela Editora Barracuda (http://www.ebarracuda.com.br/ ).