Por Renan Nazzos
Quem ouve os trabalhos mais recentes da cantora e compositora Adriana Calcanhotto, percebe um processo de feitura dos discos com o corte proposital de excessos, acordes, vozes, enfeites, efeitos, repetições e sobras para, assim, evidenciar o que sobreviver de cada canção e for, portanto, o essencial. Esse foi o argumento para seu disco de 2002, Cantada, e a ideia parece ter sido, de alguma forma, perseguida nos dois trabalhos seguintes – excetuando os discos sob o heterônimo Partimpim – Maré (2008) e o mais recente O Micróbio do Samba (2011). Apesar disso – ou por isso mesmo -, Adriana continua produzindo discos elegantes e distantes de uma linearidade previsível. No entanto, foi ainda na década de 1990 que a artista abusou das texturas, instrumentos, ruídos, doses de experimentalismos e trouxe de vez a poesia para sua música, naquele que é considerado por muitos o seu grande disco. Trata-se do terceiro título de sua discografia, A Fábrica do Poema, gravado no inverno de 1994 e lançado no fim do mesmo ano, quando Adriana já não usava mais os cabelos amarelos e ainda assinava seu sobrenome com um único T.
Depois do enorme sucesso do disco Senhas (1992), que lhe rendeu disco de ouro e exaustiva execução de músicas como Esquadros e Mentiras, Calcanhotto concebeu A Fábrica do Poema para fugir da superexposição na mídia, chatear imbecis e não ser aplaudida como anuncia na primeira canção do disco, a deliciosa Por que você faz cinema?. Adriana se apropriou da resposta do cineasta Joaquim Pedro de Andrade para a pergunta-título (Joaquim Pedro de Andrade responde in “Pourquoi filmez-vous?” Libération – Maio 87) e fez a melodia para o texto como quem responde por que faz música. Na última canção do disco, Minha música, continua respondendo o que quer sua música e o que quer dela. A faixa em clima jazzy tem a participação de seu pai, Carlos Calcanhotto, baterista de jazz, cool jazz e bossa nova.
Sintomaticamente, há a presença de poemas e poetas na fábrica de música de Calcanhotto, a começar pela faixa título. O poema é de Waly Salomão para a arquiteta Lina Bo Bardi e a construção da melodia ficou por conta de Adriana. A fábrica do poema – a canção – tem sua atmosfera onírica, densa e enigmática perfeitamente traduzida no arranjo e interpretação. É uma pérola da música brasileira! Inverno é mais uma bela canção feita em parceria com um poeta, mas dessa vez o caminho foi inverso: Adriana entregou a melodia a Antônio Cícero para que o parceiro fizesse a letra. Inverno é um dos pontos altos dA Fábrica e a canção é lembrada até hoje em seus shows. Adriana fabricou nesse disco outros dois sucessos que chegaram às rádios e também são cantados em coro por seu público até hoje: Cariocas e a balada Metade.
Mais poesia: agora com a participação dos poetas nas gravações. O verme e a estrela é um poema de Pedro Kilkerry, poeta simbolista, musicado por Cid Campos e sacado por Adriana para seu repertório. Essa que é, talvez, a canção mais rebuscada do disco ainda tem a participação de outro poeta, Augusto de Campos, lendo um trecho do mesmo poema. Outro caso é canção Sudoeste; fragmento do poema Buraco negro de Jorge Salomão, mais um a se tornar parceiro de Adriana. Eis o fragmento:
“…tenho por princípios
Nunca fechar portas
Mas como mantê-las abertas
O tempo todo
Se em certos dias o vento
Quer derrubar tudo?… “
E o poeta vai para o estúdio quebrar copos, literalmente. Aliás, essa é uma característica da sonoridade dA Fábrica do Poema; os sons inesperados vindos de assovios, vidros quebrando, passos, maquina de escrever, batidas em objetos ajudando a criar as texturas dos arranjos com os instrumentos tradicionais. Essa vontade e liberdade para experimentar são evidentes, por exemplo, em Portait of Gertrude (Gertrude Stein Reads from her poetry), leitura de um poema pela escritora norte-americana Gertrude Stein, extraída de uma fita k7.
Adriana nos engana, às vezes. Seu canto suave e o violão dedilhado delicadamente disfarçam, eventualmente, uma fina ironia e até certa fúria. Em A Fábrica do Poema, isso aparece em Roleta russa, da própria Adriana, e em Bagatelas, composta por Frejat e Antônio Cìcero, já gravada pelo Barão Vermelho. Mas não é preciso procurar muito para comprovar o que digo. Experimente ouvir Vambora – um dos maiores sucessos de sua carreira, que seria lançado quatro anos depois – e perceber o tom de ordem: “Entre por essa porta agora / E diga que me adora / Você tem meia hora / Pra mudar a minha vida / Vem, vambora“. É, Adriana está certa quando canta em Bagatelas “Que bom que eu não tinha um revólver“.
Adriana garimpou a obra de compositores amigos para concluir o repertório de sua fábrica. Aqueles que se tornariam recorrentes em sua discografia a partir de então mandaram suas canções. Arnaldo Antunes colaborou com Estrelas e de Péricles Cavalcanti foram eleitas a bela toada romantica Aconteceu e Tema de Alice, essa última Adriana já havia cantado para a trilha do filme Mil e uma de Susana Moraes. Até Chico Buarque Adriana incluiu no repertório, escolhendo e gravando muito bem Morro Dois Irmãos.
Adriana Calcanhotto justificou logo cedo com A Fábrica do Poema por que é considerada umas das artistas mais inteligentes e refinadas de sua geração. O diálogo com a poesia e experimentalismo se manteve nos discos posteriores bem como o alto padrão estético que pontua este belo trabalho.