Por Guilherme Cruz
Quando a questão é retratar a vida cotidiana das pessoas, ninguém melhor do que Chico Buarque. E dentro de sua extensa discografia o disco Vida é a expressão mais bem acabada do cantor-observado. Na década de 1970 Chico entrava no mundo cênico com toda a sua força criativa, compondo trilhas sonoras de filmes e peças de teatro. O que resultou num artista capaz de esmiuçar tanto a complexidade de tipos humanos quando da própria existência e seus conflitos. Um aspecto dessa capacidade ímpar é a beleza com que compõe eu-líricos femininos.
Quando nos dispomos a pensar sobre nossa vida não podemos fugir de abrirmos o livro do passado, é o que a personagem da música "Vida" faz com suas próprias experiências. Iniciando a canção com metais tristes, tal qual em final de festa, a canção canta uma mulher lendo sua história, traçando os limites do palco e da vida, recolhendo os navios dos impulsos de uma existência sofrida, mas que no fim se revela feliz.
E não há como ter uma vida feliz sem viver. "Mar e Lua" aproveita a liberdade do desmonte da censura para pintar, de forma absolutamente delicada, o amor de duas garotas, que, por conta da relação proibida, se suicidam num último ato de amor e confluência com a natureza. Só que na vida nem sempre os amores são eternos, o ciúme que arde em "Deixa a menina" deságua na separação em "Já Passou". Que diferentemente da canção "Olhos nos Olhos" onde o eu-lírico, ao terminar a relação, tem pelo outro a indiferença de quem seguiu em frente, "Já Passou" mostra uma superação difícil, em que a dor dá lugar a um sentimento de velada raiva mostrando-se na forma de ironia.
Ainda versando sobre fins, "Bastidores" revela uma mulher mastigando sua melancolia, sem forças para se trocar ou bisar, tomando um "calmante, um excitante e um bocado de gim" resta apenas energia para cantar e se dilacerar sobre o palco. Por fora, como uma atriz, seduz os homens na plateia, por dentro, destruída.
"Qualquer Canção" tem uma bela letra, traçando a influência da música dentro de nossas vidas. Seguindo o mesmo tema "Fantasia" inicia-se questionando se é possível aplacar a dor com o som do violão, caso a resposta seja afirmativa somos convidados a cantar a alegria, a vida e o gozo.
Ponteado pelo piano de Tom Jobim "Eu te Amo" foge das consequências dos fins, retratando um relacionamento que questiona sua existência. Onde um casal perdido um no outro, sem mais se distinguir, desencontram-se e confundem-se, sem diálogo, entre desejos de continuar e de terminar. Se nesta canção existe dúvida em "De Todas as Maneiras" só há certezas, o fim é inevitável dentro de uma desgastada relação que usa palavras para sangrar e humilhar.
"Morena de Angola" é uma alegre canção que dialoga com sonoridades angolanas e flerta com a beleza das mulheres de lá. Criando um mosaico das várias regiões do país "Bye Bye, Brasil" é a mais elaborada letra, de difícil interpretação, cruzando simples reflexões sobre um país grande em dimensões e histórias.
O disco finaliza com uma canção de arranjo alegre, mas de teor forte. "Não Sonho Mais" é uma composição onírica, onde o sonhador retrata sua vingança contra o amante que o subjuga, criando um evento de linchamento, onde a sujeira da violência se espalha pelo corpo agredido do amante que por fim é humilhado num ato de literal castração. Tudo não passa de um sonho, e quando acorda o eu-lírico volta à sua posição submissa, implorando por perdão.
Vida não é um disco de mensagens agradáveis. É um palco de cortina diáfano, através do qual vemos histórias e pessoas, tão brilhantemente retratadas, que beiram à realidade, nos trazendo às vezes a incomoda sensação de que já passamos por algumas delas.