Por Thais Sechetin
Em 2014, na época do lançamento de “High Hopes”,Bruce Springsteen disse em uma entrevista que o motivo de produzir muitas músicas e planejar muitos trabalhos futuros seria por causa da história da luz do trem:“É aquela velha história de que a luz do trem que está chegando faz a mente se concentrar”,declara. O futuro de 2014 já chegou, de fato Bruce produziu muito (lançou discos e até uma autobiografia). E a morte de George Theiss em 2018, o homem que co-escreveu as primeiras músicas que Bruce Springsteen gravou, foi um gatilho para ele idealizar o que hoje é o materializado "Letter to You".
Produzido por Ron Aniello em uma parceria que funciona muito bem desde 2012, O álbum contém 12 faixas, das quais três são de origem do início dos anos 70, antes da gravação do primeiro álbum do Boss,como é chamado pelos fãs. São elas “Janey Needs a Shooter”,que foi gravada em 1980 por Warren Zervon, “If I Was The Priest”, gravada por Allan Clarke e “Songs For Orphans”.
O trabalho foi gravado em novembro de 2019 no estúdio caseiro de Bruce, levando apenas 5 dias para sua finalização. Ele quase não tem overdubs (técnica de produção musical que consiste em gravações à parte em cima de outras já feitas) e é de tirar o chapéu para o trabalho instrumental sempre impecável de sua E Street Band, principalmente para os teclados de Ray Bittan, o órgão de Charles Giordano e o saxofone de Jake Clemons,sobrinho do falecido saxofonista da E Street, Clarence Clemons.
De todas as faixas, apenas uma não soa um tanto nostálgica e podemos sentir falta do ar jovem de Tom Morello (ex guitarrista do Rage Against The Machine que tocou com a E Street Band), porém vale dizer que mesmo tratando-se de um álbum de Bruce à moda antiga,ele contou com as vantagens dos tempos modernos para seu lançamento: A Apple Music hospedou um canal chamado “Letter To You Radio”,apresentado pelo Boss, as sessões de gravação do disco foram capturadas e transformadas em “Bruce Springsteen`s Letter To You”, um documentário disponível pela Apple TV. E o mais surpreendente e divertido foi um emoji de Bruce Springsteen criado pelo Twitter em 14 de outubro. Todas as tentativas de promoção funcionaram, afinal o disco é um sucesso de crítica, alcançando o primeiro lugar na parada de mais de dez países e alcançando o segundo lugar na Billboard 200.
“One Minute You're Here” abre o disco, marcada pelo vocal forte e pouco acompanhamento instrumental, seguido pelo primeiro single do álbum, de mesmo nome: Em “Letter To You”, podemos perceber que as três guitarras, somando a de Bruce com as da banda,trabalharam impecavelmente na base e em dois solos incríveis, unidas a um vocal gutural, tudo isso envolvido no contexto de uma letra cheia de simbolismos.
“Burnin Train” é outro som característico de Bruce que nos leva em uma viagem para suas músicas antigas.Já“Janey Needs A Shooter” tem uma letra pesada que fala sobre envelhecimento e morte. A balada de quase 7 minutos, contém o belo trabalho de Charles Giordano tocando órgão e do Bruce brincando de mesclar o grave/rouco de seu vocal com o agudo e sutil som da gaita.
Mesmo que as faixas do álbum sejam um pouco parecidas, a nostálgica “Last Man Standing” não foge da melodia bem elaborada da E Street Band, apresentando uma boa gravação de Saxofone .“The power Of Prayer” soa um pouco apagada e escondida nessa metade do disco mas emenda com “House Of A Thousand Guitars” que encontra uma harmonia entre voz e piano envolvida pelo lirismo que pode ser comparado com o do seu trabalho anterior, o álbum “Western Stars”, de 2019.
Para quem sente falta de um bom refrão, o disco conta com o destaque “Rainmaker”, de estilo faroeste e com a segunda versão de sua própria música intitulada “If I Was The Priest” (a primeira versão fica a cargo de Allan Clarke),transformando a balada anos 70 do primeiro, em um folk que cresce gradualmente em melodia e harmonia, principalmente quando a dupla mais bem sucedida do disco entra em ação: guitarras e gaita.
E para encerrar o álbum,esse peso nostálgico se torna um pouco mais leve com “Ghosts”, que é uma música de ritmo mais agitado, seguindo pelo “Songs For Orphans”,escrita na época em que Springsteen gravou seu primeiro álbum.
“ I'll See You In My Dreams” é uma provável homenagem a George Theiss, em uma letra de fazer arrepiar não só quem conheceu a história de parceria dos dois, mas para qualquer pessoa que tenha a sensibilidade de se emocionar com uma canção, principalmente no final do disco, onde a E Street Band sessa seu instrumental e apenas o piano e a voz do Boss se despedem com a frase “i´ll see you in my dreams”,um verdadeiro post scriptum de “Letter To You”...
E é essa a sensação que invade ao encerrar o disco: não trata-se mais de um jovem Springsteen do início dos anos 70...Nem do Boss dos anos 80, 90 e 2000...Esse homem já amadureceu, viveu encontros, desencontros e arrependimentos, como todos nós. E hoje deixa seu legado pois ele sabe que não somos eternos, apenas isso e natural assim. Só pedimos para os grandes arquitetos do universo que atrasem a chegada dessa tal “luz de trem” no caminho de Bruce em pelo menos meio século.A arte agradece.