Raros são os dias que, desde os primeiros minutos de alvorada, Curitiba presenteia-nos não apenas com um nascer de Sol memorável, mas, também, com sua presença durante todo o desenvolver do dia. Como testemunha, presenciei o nascimento do dia 26/06 ao pé da soleira onde vivo e, também como testemunha, quase uma dezena de horas depois, presenciaria um dos momentos que ficarão talhados em minha memória por um grande tempo.
Em diversos momentos, desde as primeiras resenhas e textos lapidados no
Rock Pensante, afirmavamos que, apesar de primar pela reprodução, Curitiba conta(va), hoje, com uma cena musical fértil, protegida e resguardada por grupos que fazem da arte uma brincadeira simples e inteligente, assim como ela, a arte, deve ser. Na noite do dia 26/06, no palco do Auditório Salvador de Ferrante, dois desses grupos, além de firmar o pé cada vez no cenário da cidade, estavam a provar que, sim, é possível escrever um nome na lembrança das pessoas através da música, e que Curitiba é mais do que "reprodução": é criação do começo, meio, até o derradeiro fim.
Foi pensando nisso que pus-me a dar os primeiros passos para a parte de trás do palco do Guairinha. Inexplicavelmente, mesmo quase 12 horas depois, a imagem do nascer do Sol ainda latejava intermitentemente na minha memória, como se significasse alguma coisa que, até o momento, eu não conseguia compreender. Ao chegar no palco, as coisas começaram a tomar seu lugar. Em torno de 1 hora, o Pão de Hamburguer iria dar início ao festejo do retorno aos palcos do Trem Fantasma, e a decoração do palco onde eles se apresentariam era simplesmente um retrato de sinceridade: sempre voltando às raízes comuns do rock n' roll que permeia cada banda, o palco contava com livros, cinzeiros, sofá, marionetes, livros e uma dezena de discos que, só pelas capas, já explicava a razão pela qual aquelas bandas dividiriam o palco para um registro igualmente memorável: da nova safra, tanto o Pão como o Trem seriam os primeiros a gravar um CD e DVD independente. Era a prova suficiente de que era possível caminhar com seus pés, mesmo que as circunstâncias mostrassem-se incongruentes. Era, pois, um momento de rara importância no circuito independente da cidade.
Do palco, descemos à platéia e esperamos. Talvez influenciado pelas capas de discos que ornavam o palco, lembrei-me de algumas pinturas que marcaram minha infância, e tentei assemelhar aquele momento como a criação de um quadro novo, sem muitas regras ou certezas. Interrompi meu pensamento quando a cortina abriu-se lentamente, permitindo que a platéia que lotou o Guairinha começasse a ouvir, das mãos de Joel Rocha, os primeiros compassos abafados de "Sr. Dalí". Coincidência ou não, o Pão de Hamburguer começava seu show com paleta e pincéis à mão. A tela para a pintura não poderia ser melhor: coração e mente de mais de 315 pessoas que vieram prestigiar, de modo justo, as duas bandas. A troca fácil de andamentos de "Sr. Dalí", uma das características marcantes do Pão, fez a canção, ambientada justamente em um teatro, se assemelhar a uma troca de atos no melhor estilo "Nelson Rodrigues": rápido, direto e desconcertante.
Quando todos haviam se acostumado com a atmosfera mais densa da canção, "Princesinha do Tio" trocou o ar e fez o povo saltar silentemente das cadeiras. A cozinha do Pão fez um trabalho primoroso: Rennan e Brunno Frois tocaram como se brincassem e trocassem passes com a bola no pé. A cada galope que Rennan produzia com as baquetas, Brunno abafava com as quatro cordas e transmitia, simultaneamente, à Leonardo Bokermann e Joel, que o retiam por instante antes de entregá-la a Gabriel Fausto. Nesse momento, o galope seco e abafado virava som, e quando Gabriel desferia em bom tom para público, já não se percebia mais galope ou efeitos de som: era música, era arte, que todos os presentes saboreavam e ouviam. O Pão se apresentou como nunca: quem acompanha o desenvolver do grupo pode atestar isso sem incorrer em falso exagero.
Adiante, o Pão fez toda uma platéia pensar com "As Noites Não Mudaram", que contou com a presença da "prima" Fernanda Fausto de Almeida na flauta, retomando o formato da canção utilizado no show do Acústico Mundo Livre FM. Preparado o terreno, seguiram-se ainda "Lição de Vida" e "Será que Eu vou Virar Bolor", do mestre mutante Arnaldo Baptista. O riso naturalmente tenso do início do show, estampado no rosto de cada um, à essa altura já era o retrato de alegria, e a banda se divertiu (e fez divertir) de modo singular sobre o palco. Cada um teve o "seu show" nesse dia, e nenhum deles perdeu o rumo: Gabriel, Joel, Leo, Brunno e Rennan fizeram por merecer as indicações contínuas de "uma das melhores bandas" de Curitiba. Quando a última nota de "Ó Pai" ecoou no teatro, o público fez a única coisa que poderia fazer de modo sincero: aplaudir de pé uma memorável apresentação. O nascer do Sol, nesse instante, já fazia todo o sentido do mundo para mim.
Pouco tempo depois, foi a vez da banda da noite ocupar o palco. O Trem Fantasma finalizava um hiato de apresentações com a inclusão de um novo integrante: Marcos Dank vinha a possibilitar tanto à banda, quanto ao som, maior liberdade. Curiosamente, o nome do novo show apresentado pelo grupo era "Oliver no Planeta do Sol", nome este que batizou a primeira canção apresentada pelo grupo naquela noite. O Sol, novamente, quase sem querer, voltou a mostrar sua face. E assim como os primeiros raios de Sol, que quando nascem não sabem quando ou quem (ou o quê) irão atingir, livre de qualquer regramento, o Trem apresentou sua música ao público: não há como rotular a nova sonoridade proposta por Leonardo Montenegro, Rayman Juk, Marcos Dank e Yuri Vasselai. Tanto "Oliver no Planeta do Sol" como a seguinte, "Só Imagino", voaram livres pelo ambiente do Guairinha, atingindo, um a um, todos aqueles que lá estavam. As canções, sobrepostas uma à outra, sem fim ou começo definido, deram espaço para a conhecida explosão de "Não Vai Mais Fazer". O público pulou.
É bonito ver o "novo" Trem Fantasma deslocar-se rapidamente sobre os trilhos. Como artífices, Rayman e Marcos trocam de instrumento como se trocassem de ferramentas: Rayman alterna a condução das quatro cordas com a imposição do órgão que marcou a sonoridade da banda; Marcos saltava do baixo à guitarra quando necessário. As poucas arestas que antigamente sobravam foram aparadas: o novo som do grupo (e, ao ler, coloquem a carga máxima no termo "novo") era livre, rápido e mais progressivo do que nunca. Nessa trilha, Yuri fez, assim como Rennan, um excelente trabalho com a bateria. Leo Montenegro, que há apenas dois dias havia completado mais uma primavera, acolchetou a sonoridade marcante de Rayman, Yuri e Marcos com suas seis cordas: o jovem guitarrista teve um desempenho ímpar. Na primeira fila, o queixo da platéia já apresentava os primeiros sinais da gravidade.
Rayman, maestro e condutor, fez também uma excelente apresentação, pautando sempre na criatividade a raiz do som que produzia. Dank, apesar de naturalmente contido em sua estréia, provou ser a engrenagem que faltava na grande máquina do Trem. Tanto isto é verdade, que sua importância é notável nas novas canções apresentadas pelo grupo, como "Insuportavelmente Só" e "Ao Vivo na Pompéia" que, além de ser um nítido ode ao Floyd, mostrou-se como uma das canções mais bem construídas pelo grupo. O Trem Fantasma também fez uma merecida homenagem ao eterno Ivo Rodrigues, que há pouco nos deixou. "Luva de Pelica", canção d'"A Chave", foi a escolhida para relembrar a obra de Ivo. Já na parte final, "De Fato" incendiou o público novamente. E, uma vez mais, os aplausos foram a merecida recompensa ao grupo, não apenas pela volta aos palcos, mas também - e principalmente - pela apresentação impecável feita no Guairinha.
No fim, as duas bandas, juntas, foram saudadas, como não poderia ser diferente. Depois de tudo isso, a noite se encerrou (como não podia ser diferente) à altura de seu início. Mesmo sem suspeitar, o Sol se fez presente não apenas na manhã e no entardecer do dia 26/06: ele também sentou praça na apresentação do Trem Fantasma e Pão de Hamburguer. A cada nota que cada uma das bandas produzia, era o mesmo que sentir um raio de Sol na face, um sensação singular mesclada em arte e alegria. Nesses dias, o som e a música, ambos intangíveis, tomaram corpo, apresentaram forma e puderam ser "tocados" por todos os presentes. O Guairinha ficou cheio de mentes, corações, êxtase e Sol. O nome disso? Música curitibana, meus caros, música curitibana. Como jamais fora lapidada antes.
por Rafael Corrêa